quarta-feira, 14 de abril de 2010

Encontro com Ivo Pogorelich

Revista Francesa "Clássica"
No mês passado, a revista francesa "Classica" nos presenteou uma edição com diversas matérias inteiramente destinadas aos grandes pianistas eruditos atuais. Essa é a terceira e última entrevista que vou traduzir. Talvez ela até seja a mais interessante de todas [...]

Texto e Entrevista por Olivier Bellamy:

Paris, Novembro de 2009: O pianista croata Ivo Pogorelich retorna à "Salle Gaveau" em um recital excepcional. Esse é um reencontro com um astro único, conseqüentemente os testemunhos também são preciosos.


Você deu ontem à noite um concerto magnífico na Salle Gaveau com Beethoven, Brahms, Scriabin e Rachamaninov no seu programa. Sem dúvida eles estão muito contentes em reencontrar-te assim em boa forma. Podemos dizer que um novo Pogorelich nasceu?
Para mim, a coisa mais importante, seja na minha carreira, ou seja, na minha vida em geral, é de agir sempre com dedicação, pois essa é a chave que abre as portas do saber e do conhecimento. Assim que nos dedicamos ao nosso trabalho, podemos progredir. Ainda tenho muitas coisas para descobrir no domínio das artes. Como pianista, eu passo a maior parte do meu tempo conhecendo melhor meu instrumento. Ontem, para o concerto, eu apresentei três peças novas no meu repertório, mas também as peças as quais eu já estava atrelado a mais de 30 anos. Agora eu as revejo com uma nova inspiração.

O público da Salle Gaveau teve a surpresa de encontrar você ao piano enquanto eles entravam na sala. Você estava com Jeans e com um boné na cabeça. Depois você foi se trocar nos bastidores e o concerto começou.
Na Salle Gaveau eu toquei em um Yamaha, um instrumento que me é pouco familiar. Eu tento sempre manter um contato com o piano. Isso não se trata somente de uma história de aquecimento de dedos, é necessário também "aquecer" o instrumento. Como um carro no inverno. Nós devemos aquecer o motor antes de partir. Para mim, é natural ficar com o instrumento até o último instante sem que o público tenha que esperar na porta da sala de concerto.

Você tocou todo o seu programa com as partituras sobre seus olhos. No entanto sua interpretação toma muita liberdade com o texto...
Eu faço muitas variações enquanto eu estudo. Eu utilizo o texto ao máximo. Às vezes nada mais que apenas o texto, o que quero dizer é que o elemento físico e concreto da representação da música me inspira. Às vezes eu preciso de apenas 1 segundo para decidir em seguir uma ou outra idéia. É uma questão de nuances. Isso me permite libertar-me completamente. É por isso que eu amo ter as partituras na minha frente, mesmo que eu as conheça de memória.

Sua interpretação varia muito de uma noite para outra?
A receita é extremamente simples. Perguntaram um dia à Picasso se ele acreditava em "inspiração". Ele respondeu: "Claro! Geralmente, ela vem após oito horas de trabalho". É necessário convidar essa inspiração e conseqüentemente estudar bastante. É ainda essa idéia de devoção que eu evocava sempre. Por exemplo: A rainha da Inglaterra. Ela é dedicada? Eu acredito que sim. Após 50 anos ela exerce sua função com responsabilidade. É isso que eu faço também. A responsabilidade implica forçosamente em "pesquisa", em numerosas horas de dúvida, em dilemas em perspectiva. Tudo isso, o público não tem consciência: a fase preparatória do concerto. Meses, anos... Porque será que eu retorno em um trabalho velho de mais de vinte anos? A fim de encontrar a essência, a beleza, a poesia que pode ser então minha escapatória e que eu descubro agora. Essa liberdade não é frívola, não é um capricho. Ela fica fundada no trabalho do compositor. Eu pertenço a uma escola de pianistas que remonta à Beethoven ou à Liszt. Eu sou o sétimo pianista após Beethoven e o quinto após Liszt que segue essa linha.

Você tem a impressão de ser o mesmo artista que era no começo de sua carreira ou você estima ter mudado consideravelmente a maneira de considerar seu trabalho de pianista concertista?
No domínio da arte, não existe distância, não existe idade. Bellini morreu aos trinta e quatro anos e deixou para traz sua "Norma". Chopin tinha 17 ou 18 anos quando escreveu seu primeiro concerto. Os artistas não são limitados pela época, idade, ou distância. É necessário abrir as portas que levam ao universo desses gênios. A única chave que podemos usar é o trabalho. É o segredo. Não podemos deixar a carreira colocar em perigo o trabalho acadêmico. O sucesso é a conseqüência, não o objetivo. Eu conheci o sucesso muito jovem... Aos 22 anos o meu nome era conhecido praticamente no mundo inteiro, né? É algo muito perigoso, mas eu aprendi muito cedo pegar uma distância segura em relação à "fama repentina".

A qualidade, personalidade e mecânica do piano têm alguma influência em sua interpretação?
Ontem, me encontrei cara a cara com um instrumento que me era desconhecido. Na minha vida, eu dei apenas 5 ou 6 concertos com um piano Yamaha. Para mim foi um grande desafio! Eu estava em constante "contraponto" com o instrumento. Eu tentava extrair dele o máximo (como por exemplo, na Sonata de Scriabin, durante o primeiro movimento, onde eu fui ao limite da sonoridade. Isso, pois estava curioso para ver até que ponto eu podia ir com esse piano em particular). Eu iria estar mais confortável com um Steinway, mas conseqüentemente o desafio seria menos interessante.

Você acha que o intérprete é um criador?

Eu acho que o intérprete está, antes de tudo, à serviço da música. A substância, a essência, já está lá...na biblioteca. Essa substância é morta, mas é o intérprete que deve lhe dar vida.

Você toma muitos riscos ao piano. Alguns você os censura. Você suscita desde sempre uma grande admiração, mas também fortes oposições.

Se repararmos no público de hoje em dia, percebemos que têm muitos jovens. Alguns não tinham nascido quando eu comecei minha carreira em 1980. Eles são tão jovens! E eles vêm aos meus concertos. Naturalmente, o que é mais difícil na vida de um artista é evoluir e se avaliar constantemente! É o segredo de um bom artista! Quando eu era jovem, tive a oportunidade de observar a evolução da carreira de grandes artistas. Eu pude às vezes ver suas performances que davam a imagem de um artista cansado, em uma espécie de rotina... É isso que eu tento evitar.

Como você se prepara fisicamente e mentalmente para um concerto?

Eu acordo, eu me preparo, eu vou à sala de concertos, eu ensaio durante 3 horas. Depois eu almoço, faço uma "siesta", tomo um banho. Eu ainda ensaio por mais 2 horas e em seguida eu entro em cena para tocar durante aproximadamente 2 horas. Essa é um dia-dia de trabalho "standard" na Europa. Não na França. Na França, são seis horas agora né? Isso quer dizer que aqui na França normalmente eu acabo trabalhando em média uma hora a menos em relação aos outros países da Europa.

O que é a virtuosidade para você?

A virtuosidade vem do termo "virtuo", quer dizer alguém que tem o dom da virtude, correto? Gaudi, o célebre arquiteto catalão dizia que ser original é buscar nas origens. A virtuosidade é uma coisa boa se ela te permite de completar algum objetivo. Eu sou um artista que trabalha também esse aspecto das coisas. Há um ano e meio, eu comecei a trabalhar a Valsa Mephisto de Liszt. Eu queria encontrar a essência dessa obra que era nova para mim e que demanda uma capacidade de "atleta" para executá-la. Achar o porquê que a chamamos de Mephisto. Eu descobri que pianisticamente falando, Liszt é tão inventivo como Chopin. Pode ser que ele seja até mais, pois ele viveu mais tempo. Eu não tinha mais tocado duas sonatas de Beethoven, pois antes não considerava necessário (Sonata op.78 e op.111). Até o próprio Beethoven considerava essas sonatas "desiguais"/"irregulares". Na verdade, a Sonata op.78 era sua preferida. Você sabia disso? Ele era uma pessoa muito "experimental". O desenvolvimento é como o quadro ao cinema. É uma sonata experimental de dois movimentos. Muito pessoal. Muito difícil de tocar.

Você teve os períodos de silêncio em sua carreira. Nesse meio tempo, você continuou a "buscar" fora de cena?

Sim. Eu mudei minha técnica 3 vezes na minha vida. Como uma lagosta...mas ninguém vê isso. Para melhorar, eu tirei um tempo para poder estudar. Na realidade, eu não dei nenhum concerto apenas durante uma parte da temporada 2000-2001, só isso. Minha carreira é internacional, mas eu não toco em Londres a mais de 11 anos, por exemplo. Na realidade, é apenas uma questão de planejamento, mas eu nunca parei completamente de trabalhar. Em todo caso, eu espero que as pessoas compreendam isso que eu busco cumprir, a qualidade à qual eu aspiro. Eu comecei muito jovem, eu era muito fotogênico... Com o tempo, nos damos conta que detrás dessa imagem, existia a substância, a seriedade, um senso de responsabilidade, da devoção...

Como você trabalha sua técnica para obter essa concepção sonora extremamente original que é quase hipnotizante?

Eu quero ir mais longe na diversidade. Eu busco a originalidade do som, isso que me distingue bastante de meus colegas. Como sai um som do instrumento em toda sua diversidade? É graças à técnica. A técnica não significa apenas tocar bem, rápido e forte. Não, não... A técnica é o som. Para obter um som longo com uma larga paleta de cores, é necessário entrar em um novo "espaço". É um termo que os franceses adoram. Entrando nessa nova dimensão, nós entramos também na alma do público, do compositor e até mesmo na nossa! Em termos práticos, nós falamos da técnica.

Como todos os grandes, Rachmaninoff, Horowitz, Argerich, você tem um som muito claro e ao mesmo tempo muito rico...como você conseguiu fazer isso?

Escute... Rachmaninoff, no fim de sua vida, sofria de artrite. Ele tinha conseqüentemente um som muito curto e tinha que tocar rápido senão criava-se um "vazio". Essas são as regras do físico da pessoa. Assim que nós produzimos um som longo que atravessa a sala de concertos como um arco-íris, podemos considerar-nos mestre da sonoridade. Nós podemos pará-lo quando quisermos. O som não morre, ele não sufoca, ele vive! Sou eu quem decide. É isso o belo canto, não? É isso a claridade! Eu respeito todos os sons. Às vezes, a música se encontra entre os sons. O movimento se encontra entre os sons. Isso é a pilotagem de luxo, é a pilotagem de mestre!

Quando você vai retomar o caminho dos estúdios de gravação e em qual estado de espírito?
Em um espírito de sacrifício. É muito simples. É necessário decidir qual direção tomar na minha vida. Você sabe... Para mim o problema sempre foi a diferença entre qualidade reativa e qualidade absoluta. Todo o mundo diz que "Cullinan" do Tour de Londres é o maior e mais puro diamante do mundo, mas existem também outros diamantes tão magníficos como ele! Por isso que ao longo dessa imensa viagem que é a criação artística, nós podemos esperar uma qualidade relativa, mas nós queremos sempre esperar a absoluta! Esse absoluto tem um segredo. É como um ímã. Quanto mais nós nos aproximamos mais ele se distancia! Isso não tem fim, por isso que durante os anos eu não fiz mais gravações. Tudo isso por causa do conflito entre o valor relativo e absoluto. Quando nós nos lançamos em algo, tentamos sempre fazer o melhor possível, como um esportista que pretende ganhar a medalha de ouro, não? Ou ele chega um momento onde ele deve gravar tudo renovando sua inspiração e seguindo a diante. Por isso que esse ano, eu penso em gravar. Eu sou curioso em ver no que isso vai dar.

Como você constrói seus programas?

Eu faço sempre de maneira que o público de certa maneira "receba" por seu dinheiro do ingresso, por isso que todos os meus programas são longos. Por esse programa em particular, tem uma linha diretriz muito forte. Beethoven era um grande pianista. Brahms também. Scriabin e Rachmaninoff representam um movimento que tende ao expressionismo. Por isso a linha é clara. Isso que reuni nessa obras, é isso que nós podemos chamar de "o instrumentismo".

O concerto é um momento sagrado para você?

É eterno. Tem certas obras que se situam tão acima do resto! E porque não? Existe um universo. Meus dedos produzem alguma coisa de eterno. É um trabalho em constante progressão em cena por causa de todas as cores, esse trabalho de dedo.

Tocar em público é um ato trágico?

Mais que trágico, é transcendental.

Você é sensível às reações do público?

Naturalmente. O artista é o mestre da sala de concertos, não? Os papéis estão claros. Por isso que sendo mestre da sala de concertos necessitamos atenção. Digo isso pois estava um pouco aborrecido no concerto de ontem a noite, pois havia um jovem que não parava de me filmar do seu telefone celular e que me cegava com seu flash... Na nossa época, a tecnologia pode perturbar um concerto. Em lugar de aproveitar, as pessoas preferem filmar, gravar... O momento do concerto é muito mais precioso que uma gravação! O que você prefere? O peixe fresco ou enlatado? Mas o que você quer: as pessoas adoram gravar para mostrar para amigos, vizinhos...

Porque certos artistas fascinam mais que outros?

É uma questão de atitude. Acreditamos em certos artistas e em outros não. Nós acreditamos mais em certos artistas que em outros. É uma história de atitude, sim.

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Espero que tenham gostado!

Abraço a todos,

John Blanch
(Twitter / Formspring / Site / Email)

4 comentários:

  1. Estes pianistas parecem seres de um outro planeta, a sensibilidade que eles tem é incrivel, eu fico impressionado....obrigado pela tradução, você também é um ser de outro planeta, ainda ouviremos falar muito no seu nome....tão jovem e tão dedicado!! parabens

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  2. Adoro compartilhar as novidades com os leitores do blog. Muito obrigado!

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  3. Pogorelich diz que a técnica dá a qualidade do som. Me lembro de uma entrevista com Welser-Möst na qual ele diz que somente uma grande orquestra consegue produzir um pianissimo que preencha todos os cantos de uma sala de concertos.

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