quarta-feira, 31 de março de 2010

Encontro com Martha Argerich

Revista francesa "Clássica"
Nesse mês, a revista francesa "Classica" nos presenteou uma edição com diversas matérias inteiramente destinadas aos grandes pianistas eruditos atuais. Nos próximos dias vou traduzir e disponibilizar para os leitores do blog as interessantes entrevistas com três grandes nomes do piano erudito.


Texto e Entrevista por Olivier Bellamy:

"Ela é repleta de mitos. Suas gravações de Schumann, Liszt ou Chopin são históricas. Mas se Martha Argerich é uma lenda, é que desde sempre ela cultiva, além de seus dons pianísticos fenomenais, uma ética de absoluta liberdade.

Um dia você me disse amar o piano, a música, mas não a carreira. E hoje? Continua com a mesma opinião?
Sempre é a mesma coisa. A carreira é uma espécie de corrida contra o tempo. Enfim, é um pouco bizarro dizer isso pois tem muitos músicos desesperados para serem contratados...então agente se sente um pouco culpado.

Temos a impressão que a descoberta de seus dons foi mais uma preocupação que uma alegria...

Meus pais e meus professores esperavam muito de mim, mas eu acredito que eu também exigia demais de mim mesma. Além do mais, as outras crianças me olhavam feio. Eu tinha os cabelos curtos! Eles tiravam sarro de mim por isso.

Olhando o passado: seus discos, seus concertos...Você tem a impressão de ter construído alguma coisa?

Não, eu não sinto isso dessa maneira. Se não é alguma coisa que eu acabo de fazer, parece que não aconteceu comigo. É como se fosse outra pessoa. Sim, evidentemente, eu sei que aconteceu comigo, mas eu não o sinto profundamente. E além do mais, nós podemos sempre fazer melhor. O que significa ser pianista e fazer concertos? Eu lamento profundamente de não ter aprendido a arte da improvisação. Bom...eu ainda estou viva! Quem sabe eu ainda não aprendo a fazê-lo um dia.

Sua maneira de tocar é sempre rica de criatividade. Você improvisa à sua maneira. Você sente isso?
As vezes. Nos dias felizes. Existem surpresas. As pessoas falam sempre desse tipo de impressão que eu passo. Mas quando eu escuto o que eu faço, eu acho bastante "quadrado".

Sempre falam que você era rebelde e esquiva, apesar de você ter um lado muito clássico.
Quando eu toco, tem algo que me prende, apesar de mim. Não é que eu não queira fazer isso ou aquilo, não. Tem certas coisas que acontecem...

Emmanuel Krivine diz ao seu respeito: "Ela não sabe nada, mas ela sabe tudo."
É isso mesmo...(risos) Pode ser isso mesmo.

Vincenzo Scaramuzza, seu professor, dizia que você tinha uma mão feita para o piano...

Ah é?! Eu não sabia disso. Era sem dúvida para aborrecer Bruno Leonardo Gelber. Nos éramos as únicas crianças na sua classe. Ele tinha tendências sádicas. Ele me dizia: "Gelber está na sua frente. Ele vai bem mais rápido..."

Quanto mais você toca uma obra...
...mais nós encontramos, sim, lógico, pois a música é ilimitada e inesgotável. É claro que podemos cair na rotina e imitar-nos sempre. É uma tentação, principalmente se pensamos que tocamos muito bem na última vez. De qualquer maneira, cada dia que amanhece é diferente.

Sua maneira de tocar evoluiu?
Eu não sei...eu espero que sim. Algumas vezes, me dizem que evoluiu para melhor. Sobretudo as pessoas com as quais eu tenho uma intimidade musical como Nelson Freire. Com ele, agente pode falar de nossas diferenças. O que é importante é conservar certa autenticidade. É muito sutil e muito difícil de conservar.

E a sua carreira?

Minha carreira? Eu nunca dirigi isso!(Risos) Nem minha vida...As coisas importantes não aconteceram porque eu as previ ou as planifiquei. Ter uma filha, por exemplo, aconteceu assim.
Na minha infância, eu era mais estruturada. Aos 16 anos, eu quis fazer o concurso de Geneve, pois Friedrich Gulda tinha ganhado. Depois, parou por aí. Eu queria descobrir a vida. É por isso que eu não gosto de receber homenagens ou prêmios por meu percurso, pois isso pertence ao passado. Eu acredito que o senso da vida é uma descoberta permanente, até o fim, até que não haja mais vida.

Dizem que você nunca estuda. É um mito?

Não, é claro que eu preciso estudar. Se eu não tenho concertos, eu posso ficar sem fazer nada, mas eu estudo mais hoje em dia que antigamente. Eu me lembro que ficava em estado de pânico. Eu chegava a esquecer que eu devia dar um concerto e eu me lembrava bruscamente disso três dias antes! Era muito penoso para o sistema nervoso.

Vamos falar um pouco sobre compositores. Schumann!
Sua música me toca muito diretamente...uma espontaneidade, uma pureza...e também, logicamente, a loucura e a mudança de humor. Eu posso chorar. Quando eu toco, eu fico com lágrimas nos meus olhos.

Yves Nat dizia que Beethoven era um deus e Schumann, um amigo
Ah! Sim, é possível. Ele possui uma imaginação louca, ele abre os mundos, ele tem sua linguagem própria impossível de ser confundida. Um amigo da alma, sim. Mas é misterioso demais... Todos esses compositores nos deram e proporcionaram tanta coisa...é muito comovente.
Nós, os intérpretes, apesar de todos os barulhos, distrações e tecnologia, devemos sentir algo muito forte com nossa sensibilidade. Os compositores tinham muito mais espaço para desenvolver sua própria espiritualidade. Nós temos tão pouco espaço!

Você sempre teve um problema com Mozart!
(Risos) O pai de Daniel Barenboim me disse um dia quando viajávamos: "É muito bom isso que você faz; porque você pensa? Toque!". Gulda me dizia a mesma coisa: "Assim que você pensa, começa a dar tudo errado!"

Os pianos, você os considera como seres vivos?

É verdade! Na minha casa, eles não são sempre fáceis de conviver. Quando eles não gostam de mim, eu não toco neles. No palco, as vezes encontramos pianos muito antipáticos, então nós nos dizemos: "Outros já tocaram nele, então eu também. É necessário buscar...

E Chopin? Você estará nesse ano no júri do concurso de Varsóvia.
Chopin é terrivelmente difícil. Faz tempo que eu não o toco mais...É meu amor impossível. Ele é muito ciumento...

E Liszt? Você tem uma foto dele em cima do seu piano!
Ele era muito bonito! E possuía uma personalidade extraordinária. Um ótimo compositor, um virtuose fora do comum e uma pessoa maravilhosa. Ele realizou tantas coisas contraditórias. Ele era profundamente religioso e ao mesmo tempo um "Dom Juan". Ele também protegeu tanto os outros músicos...

E você, você tem consciêcia de sua beleza?

Eu nunca fui bonita. Eu sempre fui "meio bonita", como dizia minha filha Annie, filha de Charles Dutoit. Quando ela tinha seis anos, eu disse a ela "Annie, você é muito linda!" e ela me respondeu:"Mamãe, eu não quero ser muito linda, eu quero ser meio bonita como você!"

Você tinha uma reputação de ser uma "papa homens", uma vamp...

Eu nunca fui isso. De verdade. Pode ser que eu era muito míope. Eu não levava óculos e tinha sempre um olhar bizarro com os olhos pregueados. E além do mais eu fumava muito e era muito pálida. Eu usava sempre roupas pretas na noite, antes mesmo da moda lançada por Juliette Gréco. E também eu tocava oitavas super rápido.

Você mora entre Bruxeles e Genéve. Você domina bem a língua francesa?
Desde a adolescência eu sempre adorei a língua francesa. Não só por causa de André Gide e os pintores impressionistas. Eu sempre pendurei a assinatura de Debussy em cima da minha cama: "Claude Achille"...Eu amava bastante Sartre, Beauvoir e Sagan em uma época. Eu tinha 15 anos. E depois Ravel!

Você não se sente atraída em "ensinar música"?
Eu não tenho nenhuma experiência e isso me parece muito difícil. Eu tenho uma péssima lembrança , quando eu tinha trinta anos, à Sienne, na Itália. Eu precisava escolher os alunos. Eu disse: "Não, eu quero pegar todos". Eu queria algo democrático. Isso logicamente não deu muito certo. Eu fiquei em pânico e fugi. Eu admiro muito os master classes de Daniel Barenboim das sonatas de Beethoven. Eu acho isso maravilhoso. Ele é um músico completo. Eu tenho também um outro amigo, Fou T'Song, um extraordinário pedagogo.

Te falta um pouco de autoridade...
Ah! Isso eu não tenho mesmo. Com minhas filhas também não. Eu detesto que sejam autoritários comigo e eu não gosto de obedecer.

Você se lembra de algo de sua infância onde ao mesmo tempo você já estava precocemente madura?
Eu me opunha aos meus pais, pois eu sempre perguntava "Por quê?" Eu queria compreender tudo e eles não me diziam tudo. Eu me sentia as vezes rainha e escrava.

O que é um artista para você?
É alguém que está sempre em busca o belo...que tenta exprimir o espírito de seu tempo mas que procede também a sua época. Através dos meios artísticos, logicamente, e científico também.

Quais são os grandes artistas de nosso tempo?

Eu penso em Friedrich Gulda. É um pianista que aos 24 anos tocou tocava todas as sonatas de Beethoven, que fazia jazz, que compunha. E Rostropovich, Ele fez muitas coisas para a música no seu tempo. Gidom Kremer também. Mas os heróis da comunicação, evidentemente, são Bernstein e Daniel Barenboim: devido às suas preocupações sociais, políticas e obviamente pois eles são grandes músicos. Ele não fica na sua "torre de marfim" (Ficar na torre de marfim = expressão francesa que significa ser genial e ao mesmo tempo estar completamente isolado em seu próprio mundo)

O que você poderia dizer para terminar a entrevista?

Eu preciso estudar. (Risos)

Você será sempre pianista?

Eu não sei o que fazer além disso. Bom, eu sou uma avó também. Você tem alguma sugestão? Qualquer coisa que me possa abrir os horizontes...

-------------------------------------------------

Espero que tenham gostado,

Abraço a todos,

John Blanch
(Twitter / Formspring / Site / Email)

8 comentários:

  1. Como sempre,brilhante,didático e,claro,além instrumentista,um educador musical virtual,através do blog.

    ResponderExcluir
  2. Ficar em torre de marfim é uma expressão que existe tranqüilamente em português também.

    ResponderExcluir
  3. Obrigado pelos comentários!
    Não conhecia essa expressão, mas acho que entendi o seu significado.
    Abraço a todos,

    J.B

    ResponderExcluir
  4. A verdade é que Gulda foi sua grande paixão, Argerich é essencialmente uma intérprete de Românticos, daí suas preferências e talvez daí seu problema com Mozart, um dos preferidos de seu ''professor'' Gulda , engraçado.

    ResponderExcluir
  5. Engraçado este lance da "Torre de Marfim"...
    Se não há parceiros de conversa inteligente por perto, o que mais uma criança sensível pode fazer à não ser se isolar e viver de sua própria imaginação?
    Hoje em dia isto não é mais necessário, com internet acessível à quase todos, mas... e para quem está isolado num sertão qualquer deste país (Brasil), onde nem internet tem?
    Parece incrível a Martha usar esta expressão, pois sugere que talvez ela também tenha sido acusada de se isolar na sua "torre de marfim", quando criança-prodígio.
    Mais uma vez, obrigado pela tradução e pela sua dedicação empenhada em divulgar a cultura erudita, pois de "rebolation" o Brasil já está mais do que suficientemente abastecido.

    ResponderExcluir
  6. Hahahahaha... eu ri muito lendo td isso.

    "Torre de Marfim" é o local onde vive a Imperatriz Criança, que reina o mundo de "Fantasia" e ao mesmo tempo vive isolada de todos - do livro "A História Sem Fim". Teria alguma relação com a "expressão francesa"?... =)

    John, continue traduzindo! É realmente muito legal poder ler essas entrevistas!
    Obrigada mais uma vez,

    Silvia Molan

    ResponderExcluir
  7. Alô John Adorei essa sua idéia de traduzir as entrevistas desses maravilhosos pianistas, mas quero dizer que amo a Martha e quero trucidá~la por ele não gostar de Mozart que é para mim o maior de todos, mas entendo perfeitamente pois na minha última aula de piano quase apanhei da Marisa pois meu querido Mozart estava um cocô de tão ruim!!! Desejo a vc toda a sorte do mundo aí em Paris e se eu viajar no fim do ano como costumo fazer talvez a gente possa se encontrar. Um enorme abraço do Caio Ferraz

    ResponderExcluir
  8. Muito bom, parabéns pela iniciativa. Espero mais entrevistas ansiosamente.

    ResponderExcluir